A Serpente, o tentador, aparece nas vestes do libertador, daquele que eleva o homem para além do bem e do mal, para além da “lei”, para além do Deus antigo, inimigo da liberdade. Os últimos duzentos anos vêm redescobrindo o princípio libertador do mundo afirmado pela seita dos Ofitas, princípio vislumbrado, pela concepção sabatiana, com seu Messias entregue às serpentes.
OS OFITAS: A SERPENTE COMO LIBERTADOR
Há mais de dois séculos a cultura ocidental se compraz do mal, abranda-o, justifica-o. O negativo é fonte de vertigens, do delírio da onipotência, de emoções inconfessáveis; ilumina com clarões avermelhados as veredas proibidas, os abismos da noite, os picos congelados. Suas cores tingem o peculiar titanismo moderno, o desafio provocador que este lança ao Eterno. Se o Fausto antigo, o de Marlowe, se arrepende na hora da morte, o posterior vive do ultraje, anseia pela dissolução. O pacto com a Serpente, titulo dado por Mario Praz a um de seus últimos livros1, hoje se torna estável. A Serpente, o tentador, aparece nas vestes do libertador, daquele que eleva o homem para além do bem e do mal, para além da “lei”, para além do Deus antigo, inimigo da liberdade. Os últimos duzentos anos vem redescobrindo “o princípio libertador do mundo [afirmado] pela seita dos Ofitas”2, princípio vislumbrado, segundo Gershom Scholem, pela concepção sabatiana, com seu Messias entregue às “serpentes”3. Princípio reafirmado por Ernst Bloch em seu Ateísmo no cristianismo, onde o Cristo-Serpente liberta o mundo da tirania de Yahweh4. Goethe, segundo Vittorio Mathieu, também “ouvira falar da seita dos Ofitos”5. Em seu Goethe e seu diabo da guarda, Mathieu observa como em Fausto Mefistófeles é a “força que, das trevas, faz vir à tona o positivo do homem”6. Como afirma Deus, dirigindo-se a Mefistófeles no Prólogo no Céu, “Não deves senão mostrar-te, livremente, como o que és; nunca odiei os teus pares; de todos os espíritos que negam, o zombeteiro é o que menos me aborrece. A atividade do homem se enfraquece muito facilmente, e ele se deitaria com prazer num repouso absoluto. Por isso ponho ele bom grado a seu lado um companheiro que o estimule, e aja, e que tem, como Diabo, de criar”7. O Diabo é posto de bom grado (“gern”) por Deus como colaborador do homem. Como notava Mircea Eliade, “se poderia falar de uma simpatia orgânica entre o Criador e Mefistófeles”8. Goethe faz de Mefistófeles, do mal, a mola que leva à ação (“Tat”) àquilo que é positivo. Trata-se da idéia, destinada a ter ampla difusão, segundo a qual o caminho para o Céu passa pelo inferno. O homem só se torna homem, vivo, inteligente, livre, saboreando até o fundo o sabor amargo da vida. Ao contrário, a inocência da “alma boa” é inércia, êxtase, morte. Hegel, com sua dialética do negativo, dará uma suntuosa veste teórica a essa idéia. O homem deve pecar, deve sair da inocência natural para se tornar Deus. Ele deve realizar a promessa da Serpente: deve conhecer, como Deus, o bem e o mal. Esse conhecimento “é a origem da doença, mas também a fonte da saúde, é o cálice envenenado no qual o homem bebe a morte e a putrefação, e ao mesmo tempo o ponto em que nasce a reconciliação, uma vez que pôr-se como mau é em si a superação do mal”9. Nessa perspectiva, a figura do Anjo rebelde, daquele que, provocando o homem, o alçaria à sua liberdade, ganha um novo esplendor. Passo a passo, Mefistófeles se torna o herói, o Prometeu moderno, o libertador. “Sem buscar aqui as suas causas profundas”, escrevia Roger Caillois em 1937, “é preciso constatar o quanto um dos fenômenos psicológicos mais cheios de conseqüências do inicio do século XIX tenha sido o nascimento e a difusão do satanismo poético, o fato de o escritor assumir de bom grado o papel do Anjo do Mal e com este sentir afinidades precisas. Sob essa luz, o romantismo parece em parte uma transmutação de valor”10, de Byron a Vigny, a “mitologia satânica” elabora a figura de um “Anjo do Mal”, rebelde e vingador, cujas premissas remetem ao passado.
SATANÁS CONTRA DEUS
Com razão, Mario Praz, em seu A carne a morte, e o diabo na literatura romântica, até hoje a obra mais interessante sobre o fascínio exercido sobre a literatura do século XIX por tudo o que é demoníaco, indica o início desse processo na caracterização peculiar de Satanás oferecida por Milton em seu Paraíso Perdido. “Foi Milton quem conferiu à figura de Satanás todo o fascínio do rebelde indômito que já pertencia às figuras do Prometeu de Espio e do Capaneu de Dante”. O Adversário “se torna estranhamente belo”. Como escrevia Baudelarie: “Le plus parfait type de Beaute virili est Satan – à La Manière de Milton” 13. Em contraposição, observa Herald Bloom, “o Deus de Milton é uma catástrofe”, tal como o Cristo, que “é um desastre poético no Paraíso Perdido” 14. Para Black, “Milton não se sentia livre ao escrever de Deus e dos Anjos e à vontade uando escrevia dos Demônios e do inferno, pois era um verdadeiro Poeta, e da parte do Demônio sem o saber” 15. Um juízo que é perfeitamente compartilhado por Shelley, para o qual “nada pode superar a forma como a energia e o esplendor do caráter de Satanás se encontram expressos no Paraíso Perdido […]. O demônio de Milton, enquanto ser moral, é muito superior ao de Deus” 16.
Impávido indômito, o príncipe das trevas aparece como incansável lutador contra a tirania divina. Satanás é Prometeu, toma o lugar do mítico Titãn acorrentado por Zeus à rocha que a imaginação de Ésquilo imortalizou. O Prometeu moderno se opõe ao Deus hostil, malvado. O luciferiano Satanás parece melhor que o Criador: “Milton confere claramente uma posição gnóstica à Satanás, segundo a qual Deus e Cristo são somente versões do Demiurgo” 17. O verdadeiro afirmativo é o demônio. É ele, e não o anjo obediente, que parece, ética e esteticamente, dotado de um fascínio maior. Como afirma Hegel: “Quando se apresenta, o Diabo precisa demonstrar que nele há um afirmativo: sua força de caráter, sua energia, seu espírito consequencial, parecem muito melhores, mais afirmativos que os de alguns anjos”. “É o que ocorre em Milton”, acrescenta Hegel, “onde o Diabo, com sua energia cheia de caráter, é melhor que alguns anjos” 18.
Assim, graças a Milton, à sua reelaboração mítica, Satanás ingressa no imaginário moderno. Tem-se com isso o que Praz chama, num capítulo de sua obra, à metamorfose de Satanás, sua passagem de figura negativa à herói positivo: o rebelde triste, privado de sua felicidade paradisíaca, como o homem, por um deus tirano. Em seu estudo, Praz documenta, com grande perícia, autores e correntes que assumem a mitologia satânica. Se no século XVIII “o Satanás de Milton passou seu fascínio sinistro para o tipo tradicional do bandido generoso, do sublime delinqüente” 19, é no século XIX na tempérie romântica, que se torna rebelde, a expressão da revolta metafísica, do “não” à Criação. Foi Byron “quem levou à perfeição o tipo do rebelde, descendente distante do Satanás de Milton” 20. Com Byron o rebelde se torna o “estrangeiro”, o homem impenetrável que transcende a maneira ordinária de sentir, que transcende seus próprios crimes., é o super-homem que está mais acima e ao mesmo tempo mais abaixo dos outros homens. É o infeliz que se alimenta de ressentimento para com um deus cruel do qual imita a crueldade. A teologia de Byron é, segundo Praz, a mesma de Sade, cuja obra, segundo o autor, tem uma influência fundamental na literatura romântica. No centro está o ódio para com a criação e seu autor, a exaltação do prazer e do crime como escárnio, profanação, ultraje. Para Praz, estamos aqui diante de um “satanismo cósmico” 21. Sua influência é enorme. Se a natureza cria apenas para destruir, seguir a natureza é repetir eu ritmo, o prazer pela destruição, o gosto “sádico” que faz surgir o prazer pela dor, o delírio do aniquilamento, o divino a partir do diabólico. É a pintura de Delacroix: “Esse pintor ‘canibal’, ‘moloquista’, ‘dolorista’ que foi Delacroix, com uma curiosidade incansável por massacres, incêndios, saques, pelos putrideros, ilustrador das cenas mais sombrias do Fausto e dos poemas mais satânicos de seu idolatrado Byron; esse apaixonado pela fenilidade […] e pelos países violentos e calorosos” 22. É a poesia de Baudelarie, alimentada por Poe e Sade, cujo pessimismo cósmico é mais semelhante a heresia maniqueísta que é a religião cristã: “Abosolu! Resultante dês contraíres! Ormuz et Arimane, vous ètes le même!” 23. É a natureza de Flaubert, para qual “Néron vivra aussi longtemps que Vespasien, Satan que Jésus-Christ” 24. é a dos Cantos de Maldoror de Lautrémount, o qual confessa ter “cantado o mal como fizeram Mickiewicz, Byron, Milton, Southey, A. de Musset, Baudelaire” 25. É a de Swinburne, que, fascinado pela teologia gnóstica de Sade, declama seu homem em revolta: “… se pudéssemos deter a natureza, então sim o crime se tornaria perfeito e o pecado uma realidade. Se o homem pudesse fazer isso, se pudesse parar o curso das estrelas e alterar o tempo das marés; se pudesse mudar os movimentos do mundo e encontrar a fonte da vida e destruí-la; se pudesse entrar no céu e contamina-lo, no inferno e liberta-lo da sujeição; se pudesse erguer o sol e consumir a terra, e ordenar à lua que derramasse veneno ou fogo no ar; se pudesse matar o fruto da semente e corroer a boca do bebê com o leite de sua mãe; então o homem poderia dizer ter pecado e ter feito mal contra a natureza” 26.
Destruição e profanação: esse é o prazer maior! Um filão consistente da literatura, a partir do romance libertino do século XVIII, goza da profanação. A violação apaixona enquanto transgressão, ultraje. O corpo, o da mulher, será tanto mais objeto do desejo quanto mais for indefeso (a criança, a virgem, a freira). Profana-lo é tirar a transcendência, reconduzir à terra, revelar o rosto obscuro de Eva, o eterno feminino para sempre ligado ao poder de Satanás. O demoníaco mescla o puro e o impuro, precisa da inocência para excitar as paixões, para despertar a força explosiva do negativo. Com Sade o Eros se torna parte de uma teologia gnóstica. Depois dele o conúbio entre Eros e Tânatos, amor e morte, passa a ser o elemento dominante de um niilismo luciferino que encontra no Decadentismo, primeiramente, e nos Surrealismo, depois, sua plena realização.
SATANÁS EM DEUS
Satanás não é só o Prometeu, dublê do Anjo caído de Milton. Satanás está também em Deus. A teologia gnóstica que está no centro do ateísmo rebelde dos últimos dois séculos distingue entre Lúcifer (o libertador) e Satanás (o opressor). Ela encontra sua forma exemplar no pensamento de Ernst Bloch. Para Bloch, há, “de um lado, o Deus do mundo que se identifica cada vez mais claramente com Satanás, o Inimigo, o estagnado; de outro, o Deus da futura ascensão ao céu, o Deus que se impulsiona para frente com Jesus e com
Lúcifer” 28. 0 deus do mundo, criador, é o mau demiurgo contra o qual, no Éden, se ergueu a Serpente, verdadeira amiga do homem. É Lúcifer, com seu desejo de ser como Deus, que revela ao homem a sua destinação. “Só em Lúcifer, mantido secreto em Jesus para ser manifestado mais tarde, no final, nos tempos em que esse rosto poderá se revelar; só em Lúcifer, inquieto desde quando foi abandonado pela segunda vez, desde quando, da cruz, ergueu-se o grito que ficou sem resposta, desde quando, pela segunda vez, foi esmagada a cabeça da Serpente do paraíso presa na cruz: só nEle, portanto, no Escondido em Cristo, enquanto anti-demiúrgico absoluto, está compreendido também o autêntico elemento teúrgico de quem se revolta porque é filho do homem” 28.
Como para a seita elos Ofitas lembrada por Bloch em Ateísmo no cristianismo, a Serpente é, portanto, a libertadora. Duas vezes subjugada, no Éden e no Cristo levantado na cruz como a Serpente de bronze de Moisés, ela espera por sua vingança, por sua vitória sobre o Demiurgo que abre a “era do Espírito”. Unindo Marcião e Joaquim de Fiore, Bloch é a encruzilhada de toda á gnose moderna. Jesus, antecipação do deus que virá, do deus “humano”, é o redentor desde deus “satânico”, desde deus do cosmo, da ordem e da lei. A revolução, como dissolução da velha ordem, torna-se aqui a obra luciferina por excelência.
Como ilustre precedente de suas reflexões, Bloch chama a atenção, em Ateísmo no cristianismo, para a figura de William Blake. O poeta inglês, fascinado pela revolução americana e pela francesa, teve, além da Bíblia, quatro mestres: Milton, Shakespeare, Paracelso, Böhme. Ao primeiro dedicou um breve poema épico, Milton, composto provavelmente entre 1800 e 1803. Nele Urizen, o Príncipe da Luz, parece idêntico a Satanás. O que é peculiar em Blake é o seu The Marriage of Heaven and Hell (O matrimônio do Céu e do Inferno), escrito em 1790. Aqui a santificação dos impulsos e dos desejos, in primis o sexual, for everyrything that lives is Holy (sendo que todas as coisas vivas são Sacras!), obtém a sua consagração teórica. Para ela não há mais o mal que nega o bem: mal e bem são ambos necessários. “Sem Contrários não há progresso. Atração e repulsa, Razão e Energia, Amor e Ódio são necessários para a existência Humana. Desses contrários brota o que o homem religioso chama Bem e Mal. Bem é a passividade que obedece à Razão. Mal é a atividade que brota da Energia. Bem é o Céu. Mal é o inferno” 29.
O mal, como no Fausto de Goethe, é o que dá energia, o que desperta o bem adormecido. O Diabo é a força de Deus. Nessa sua concepção, Blake era devedor daquele que, em primeiro lugar, no arco do pensamento moderno, ousara afirmar o mal em Deus: Jacob Böhme. O philosophus teutonicus, que, segundo Hegel, “foi o primeiro a fazer surgir na Alemanha uma filosofia com características próprias” 30, estimado por Leibniz, Hegel, Schelling, Von Baader e todo o filão teosófico do pensamento moderno, é aquele para o qual, “segundo o primeiro princípio, Deus não se chama Deus, mas Cólera, Furor, fonte amarga, e vêm daqui o mal, a dor, o tremor e o fogo devorador”31. A ira de Deus é superada no amor; apesar disso, ela permanece o Urgrund, o princípio originário de tudo. Böhme, segundo Hegel, “lutou para entender em Deus e de Deus o negativo, o mal, o Diabo” 32. Deus é a unidade dos contrários, da ira e do amor, do mal e do bem, do Diabo e do seu oposto, o Filho. Nessa posição, Cristo e Satanás se tornam de algum modo irmãos, filhos de um único Pai, partes dEle, momentos da sua natureza polar. É o que afirmará Carl Gustav Jung em seu esotérico Septem Sermones ad Mortuos, escrito em 1916, que seus amigos fizeram circular como opúsculo mas nunca chegou às livrarias. O texto, que idealmente segue o gnóstico Basilide, afirma a natureza de “pleroma” de Deus, composto por duplas de opostos das quais “Deus e o demônio são as primeiras manifestações” 33. Eles se distinguem como geração e corrupção, vida e morte. Todavia, “a efetividade é comum a ambos. A efetividade os une. Portanto, a efetividade está acima deles e é um deus acima de Deus, já que seu efeito une plenitude e vazio” 34. Esse deus que une Deus e o Diabo é chamado, por Jung, Abraxas. Ele é a força originária, que vem antes de qualquer distinção. “Abraxas gera verdade e mentira, bem e mal, luz e trevas, na mesma palavra e no mesmo ato. Por isso Abraxas é terrível” 35. Ele é “o amor e o seu assassino”, “o santo e o seu traidor”, é “o mundo, o seu devir e o seu passar. Sobre todo dom do Deus sol o demônio lança a sua maldição” 36. A mensagem esotérica dos Septem Sermones levava, como em Blake, à santificação da natureza, à inocência do devir. Isso implicava, por si mesmo, a justificação do mal, do Diabo, a sua inserção, como em Böhme, num sistema polar. Não por acaso Martin Buber, tomando conhecimento do opúsculo, falará nesse caso de gnose. “Ela – e não o ateísmo, que anula Deus porque tem de refutar as imagens que dele foram feitas até agora – é a verdadeira antagonista da realidade da fé” 37. Para Buber, a psicologia de Jung nada mais constituía senão “a retomada do mote carpocratiano, ensinado agora como psicoterapia, que diviniza misticamente os instintos em vez de santifica-los na fé” 38.
O aspecto destacado por Buber não era puramente conjetural. Fora o próprio Jung que, em Psicologia e religião, chamara a atenção para a atualidade do gnóstico Carpócrates, o qual afirmava que “bem e mal são apenas opiniões humanas, e que as almas, antes de sua partida, teriam de viver até a última todas as experiências humanas, se quisessem evitar voltar à prisão do corpo. Somente o completo cumprimento de todas as exigências da vida pode resgatar a alma prisioneira no mundo somático do Demiurgo”39 A vi-_ da, afirmava no Ensaio de interpretação psicológica do dogma da Trindade, “enquanto processo energético, precisa dos contrastes, sem os quais a energia- é notoriamente impossível Bem e mal nada mais são que os aspectos éticos dessas antíteses naturais”. E, por isso que, para Deus, Lúcifer é necessário. “Sem este último não haveria criação, e muito menos teria havido alguma história de redenção. A sombra e o contrasta: são as condições necessárias de qualquer realização`”. Essa sombra está antes de mais nada em Deus, no Deus primigênio, no Inconsciente que, para Jung, é a verdadeira potência que dirige a vida, a qual deve ser “humanizada” pelo eu consciente. Só no Deus humano, Cristo, o juízo separa o que no pleroma (o inconsciente) está unido: a luz e a sombra. Ora, os “dois filhos de Deus, Satanás, o mais velho, e Cristo, o mais novo”-“, a mão esquerda e a mão direita de Deus, se separam. “Essa antítese representa um conflito levado ao extremo, ë com isso também urna tarefa secular para a humanidade, até o ponto ou a circunstância do tempo em bem e mal começarem a relativizar-se, a pôr-se em duvida, e se elevar o grito por algo além do bem e do mal. Mas, na era cristã, ou seja, no reino do pensamento trinitário, semelhante reflexão é simplesmente excluída, pois o conflito é violento demais para que se possa conceder ao mal alguma outra relação lógica com a Trindade que não seja o contraste absoluto”43. E preciso que a Trindade divina, espiritual, se concilie com um “quarto” princípio: a matéria, o corpo, o feminino, o eros, o real, para que o idealismo cristão, conciliado com o inundo, chegue a uma unidade superior. “Pois, mesmo no tempo da fé absoluta na Trindade, houve sempre uma busca do quarto perdido, desde os neopitagóricos gregos até o Fausto de Goethe. Ainda que esses buscadores se considerassem cristãos, eles eram todavia uma espécie de cristãos a latere, uma vez que consagravam sua vida ao opus, que tinha como meta a redenção do serpens quadricornutus, da anima mundi enredada na matéria, do Lúcifer decaído. (…] Nossa fórmula da quaternidade dá razão à sua pretensão, pois o Espírito Santo, como síntese daquele que foi originariamente Uno e depois cindido, flui de uma fonte luminosa e de uma obscura””. A “era do Espire-o”, na peculiar interpretação que Jung dá de Joaquim de Fiore, é a era que se segue ao eone cristão, o tempo de Abraxas em que paixões e razão. inconsciente e consciente, mal e bem, Lúcifer e Cristo, se tornarão um.
Em 1919, Hermann Hesse, que em 1920 se submeteria a análise com Jung, publicou um romance, Demian, sob o pseudônimo de Emil Sinclair. Nele, o protagonista, um jovem inexperiente, é instruído sobre o sentido da vida por um espírito “livre” que carrega em si o sinal de Caim: Demian. Para Demian, “o Deus do Antigo e do Novo Testamento é uma figura excelente, mas não é a que deveria ser. É o bem, a nobreza, o pai, o alto, o belo, o sentimental: todas coisas boas, mas o mundo é feito também de outras coisas. E isso é atribuído simplesmente ao Diabo, e toda essa parte do mundo, essa metade é suprimida e morta com o silêncio””. A ela pertence, segundo Demian, a esfera sexual. Por isso não se pode apenas venerar a Deus, “devemos venerar e considerar sagrado o mundo inteiro, não apenas essa metade oficial, separada artificialmente. Ao lado do serviço para Deus deveríamos ter também um serviço para o Diabo. A mim pareceria justo. Ou então deveríamos procurar um Deus que reúna também o demônio”’46. Como em Jung, esse “Deus se chama Abraxas e é Deus e Satanás e abraça em si o mundo luminoso e o mundo escuro”. É o amor sagrado e o amor profano, “a imagem angélica e Satanás, homem e mulher ao mesmo tempo, homem e fera, supremo bem e mal extremo”.
A visão do divino como coincidentia oppositorum, versão que sela de forma indissolúvel o “pacto com a Serpente”, atravessa, dessa forma, uma parte conspícua do mundo cultural do século XX. Lembramos, entre outras, a reflexão de Mircea Eliade, que em dois escritos, O mito da reintegração (1942) e Mefistófeles e o Andrógino (1962), expõe, a partir das sugestões de Jung, sua visão da “polaridade divina”. Nessa visão, toda divindade parece po lar, benéfica e maléfica ao mesmo tempo. A Serpente é irmã do Sol, tal como, segundo um mito gnóstico, seriam irmãos Cristo e Satanás. Essa bi-unidade divina prepara, no homem, a reintegração de sagrado e profano, de bem e mal numa unidade superior que encontra, para Eliade, sua meta simbólica na figura do andrógino.
CONCLUSÃO
A moderna teosofia dos opostos, baseada na doutrina hermética da coincidentia oppositorum, leva a um conúbio, inquietante, entre divino e diabólico, leva à idéia do Diabo em Deus. “Encontra-se por toda parte”, escrevia Romano Guardini em 1964, “a idéia gnóstica fundamental de que as contradições são polaridades: Goethe, Gide, C. G. Jung, T. Mann, H. Hesse… Todos vêem o mal, o negativo […j corno elementos dialéticos na totalidade da vida, da natureza”49. Essa atitude, para Guardini, “já se manifesta em tudo o que se chama gnose, na alquimia, na teosofia. Apresenta-se de forma programática com Goethe, para o qual o satânico entra até mesmo em Deus, o mal é força originária do universo tão necessária quanto o bem, a morte apenas outro elemento nesse todo, cujo pólo oposto se chama vida. Essa opinião foi proclamada de todas as formas e concretizada no campo terapêutico por C. G. Jung”50.
A idéia de fundo é que a redenção passa pela degradação, a graça pelo pecado, a vida pela morte, o prazer pela dor, o êxtase pela obra da perversão, o divino pelo diabólico. O fascínio que o negativo – metáfora do demoníaco – exerce sobre a cultura contemporânea deriva dessa idéia singular: que os caminhos do paraíso passam pelo inferno, que “Descida ao Ades e ressurreição” são uma coisa só51.
Entregar-se ao demônio é abrir-se a Deus, numa singular transposição gnóstica da idéia segundo a qual perder-se é encontrar-se. Nesse “sagrado” conúbio, Satanás e Deus se unem no homem. É a Identidade de Sade e dos místicos”52 desejada por Georges Bataille. Segundo ela, o caminho para baixo coincide com o caminho para cima. Fausto, agora, não pode mais se arrepender, nem na hora da morte. O Adversário tornou-se cúmplice, “parte” de Deus. É o caminho para se tornar deus. A emoção do nada, da descida aos Infernos, acompanha a descoberta do Ser, de Abraxas, o pleroma sem rosto que permanece, imóvel, no devir do mundo.
Notas
1 M. Praz. 11 patto col serpente. Milão, 1972 (reeditado em 1995).
2 Op. cit., p. 12.
3 G. Scholem. Le grandi correnti delia mística ebraica. Turim, 1993, p. 307. Edição brasileira: As grandes correntes da mística judaica. São Paulo, Perspectiva, 1995.
4 E. Bloch. Ateísmo nel cristianesimo. Milão, 1971, pp. 220-226.
5 V. Mathieu. Goethe e il suo diavolo custode. Milão, 2002, p. 192.
6 Op. cit., p. 65.
7 W. Goethe. Faust e Urfaust, 2 vol. Milão, 1976, vol. I, vv. 340-343, p. 19. Edição brasileira: Fausto. Belo Horizonte, Itatiaia, 2002.
8 M. Eliade. Il mito delta reintegrazione. Milão, Jaca Book, 2002, p. 4.
9 G. W. F. Hegel. Lezioni sinta filosofia delia religione, 2 vol. Milão, 1974, vol. II, p. 317.
10 R. Caillois. Nascita di Lucifero. Milão, 2002, p. 31.
11 M. Praz. La carne, Ia morte e il diavolo nella letteratura romantica. Florença, 1999, p. 58. Edição brasileira: A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Campinas, Editora da Unicamp, 1996.
12 Id- ibid.
13 C. Baudelaire. Journaux intimes. Cit. in Praz, La carne, Ia morte e il diavole nella letteratura romantica. Op. cit., p. 55.
14 H. Bloom. Rovinare le sacre verità. Poesia e fede dalla Bibbia a oggi. Milão, 1992, p.106.
15 W. Blake. “Il matrimonio dei Cielo e dell’Inferno” In. Selected Poems William Blake. Turim, 1999, pp. 24-25. Edição brasileira: O matrimonio do céu e do inferno. O livro de Thel. São Paulo, Iluminuras, 2000.
16 P. B. Shelley. Difesa delta Poesia. Cit. in: M. Praz. La carne, Ia morte e il diavolo nella letteratura romantica. Op. cit., p. 59.
17 H. Bloom. Rovinare… Op. cit., p.105.
18 G. W. F. Hegel. Lezioni sinta filosofia delta religione. Op. cit., vol. II, p. 315-316 e 324, nota.
19 M. Praz. La carne… Op. cit., pp. 59-60.
20 Id., ibid., p. 64.
21 Id., ibid., p. 96.
22 Id., ibid., p. 135.
23 Cit. in: Id., ibid., p. 147.
24 Cit. in: Id., ibid., p. 161.
25 Lautréamont. “Lettere”. In: Lautréamont. I canti de Maldoror. Turim, 1989, p. 531.
26 Cit. in: M. Praz. La carne… Op. cit., p. 199.
27 E. Bloch. Spirito dell’utopia. Florença, 1980, p. 314.
28 Id., ibid., p. 252.
29 W. Blake. Il matrimonio… Op. cit., pp. 19-20.
30 G. W. F. Hegel. Lezioni sinta storia delta filosofia, 4 vol. Florença, 1973, vol. 111 (2), p. 35.
31 Cit. in: F. Cuniberto. Jacob Böhme. Brescia, 2000, p.119.
32 G. W. F. Hegel. Lezioni sinta storia delta filosofia. Op. cit., vol. 111(2), p. 42.
33 C. G. Jung. “Septem Sermones ad Mortuos”. In: Ricordi, sogni, riflessioni di C. G. Jung. Milão, 1990, p. 454. Edição brasileira: Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000.
34 ld., ibid., pp. 454-455.
35 Id., ibid., p. 456.
36 Id., ibid.
37 M. Buber. L’eclissi di Dio. Milão, 1983, p. 139.
38 Id., ibid.
39 C. G. Jung. Psicologia e religione. In: C. G. Jung. Opere, vol. 11. Milão, 1984, p. 83. Edição brasileira: Psicologia e religião. Petrópolis, Vozes, 1995.
40 C. G. Jung. Saggio d’interpretazione psicologica dei dogma delta Trieità. In: C. G. Jung. Opere, vol. 11. Op. cit., p. 191. Edição brasileira: Interpretação psicológica do dogma da Trindade. Petrópolis, Vozes, 1994.
41 id., ibid., p. 190.
42 C. G. Jung. Prefazione a Z. Weblowsky, “Lucifero e Prometeo”. In: C. G. Jung. Opere, vol. 11. Op. cit., p. 299.
43 C. G. Jung. Saggio d’interpretazione psicologica dei dogma delta Trieità. Op. cit., p. 171.
44 Id., ibid., p.174.
45 H. Hesse. Demian. Storia della giovinezza di Emil Sinclair. In: H. Hesse. Peter Camenzind – Demiae. Duo romanzi delta giovinezza. Roma, 1993, p. 185. Edição brasileira: Demian. Rio de Janeiro, Record,1997.
46 ld., ibid., p. 185. Itálicos nossos.
47 Id., ibid., p. 216.
48 Id., ibid., p. 207.
49 R. Guardini. Diario. Appunti e testi dai 1942 al 1964, Brescia,1983, p. 245.
50 R. Guardini. Lettere teologiche ad un amico. Milão, 1979, p. 63.
51 E. Zoila. Discesa all’Ade e resurrezione. Milão, 2002.
52 G. Bataille. “Frammenti su William Blake”. In: Selected Poems di William Blake. Op. cit., p. 163.